terça-feira, janeiro 27, 2009

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Fraco, com fome e sem nada para além de caixas de comida vazias, o Alfredo procurou dinheiro trocado e desceu à mercearia. Após dois lanços apercebe-se que continuava de pijama. Amaldiçoou a sorte e voltou a traz. Agora, apesar vestido, não esconde o sono e qualquer pessoa deduziria que aquela personagem não está ainda integrada neste mundo por ainda não ter abandonado o do sonho. Começa a atravessar a rua e os poucos passos necessários parecem demorar-se mais que o habitual. No canto do olho talvez um vulto se aproxime, talvez rapidamente, talvez um carro. Os passos deslizavam-se mas são bruscamente estancados pela travagem agressiva de um carro azul desbotado.
Sem pânico, apenas espanto, o Alfredo procura o condutor e reconhece no olhar esbugalhado de susto o olhar outrora atento da protectora Josefa. Ela sai do carro a tremer.
- O menino está bem?
- Sim, não se preocupe.
- Como não me preocupo! Por pouco atropelava-te!
- Sim, tem razão, mas…
- Não tens nenhuma nódoa negra? Vamos ao hospital. Eles fazem um raio-x!
- Não é preciso! O carro nem me tocou. Foi só o susto. E olhe, eu vinha tão distraído que nem me assustei.
- Ai, meu Deus…o que eu ia fazendo?! Meu Deus!
Para espanto do Alfredo, os olhos de Josefa humedecem-se e brilham no resultado de uma dolorosa mágoa que a consome por dentro.
- És o Alfredo. Eu lembro-me de ti. Talvez não te lembres de mim…
- …sim lembro…
-…eu era contínua na escola e tu eras um miudinho. Ah, lembras – um suspiro denuncia um certo embaraço – e do que te lembras?
- Ora, lembro-me que você me estava sempre a controlar! Quero dizer, tinha sempre para mim um olhar e um gesto protector. Nunca entendi porquê, mas confesso que até agora não me tinha voltado a colocar essa questão.
- Sim, talvez tenhas razão. Eu era controladora. Não sabia que te apercebias disso e espero que não me tenhas levado a mal. Tu tens muitas parecenças com o meu filho Daniel. Nunca o conheceste, ele é mais velho que tu. Naquela altura ele tinha 34 anos. Mas tu eras igual a ele na tua idade – a humidade nos olhos de Josefa aumenta e em cada pausa há um silêncio maior que luta por se soltar.
- Ah… Sinto muito…não lhe levo nada a mal. Como lhe disse, até este momento não me recordava desses acontecimentos e aparentemente não posso dizer que me tenham marcado.
- Desculpa, não era de todo a minha intenção perturbar-te.
- Mas não perturbou, não se preocupe.
Há mais uma pausa mínima e o rebentamento finalmente ocorre, as lágrimas começam a nascer em catadupa. A Josefa permanecia imóvel, num silêncio entrecortado pela respiração ligeiramente descontrolada. Notava-se que tinha prática neste exercício. E isso apenas aumentava a tensão da postura dorida.
- Eras tão parecido com ele… - continua com o olhar vago e desfocado deste mundo.
- O que lhe aconteceu?
- Saiu de casa – e o olhar recola-se ao pavimento.
- Compreendo – disse a medo – e depois?
- Nada, apenas isso.
- Há muito tempo?
- Há 24 anos.
O Alfredo ouviu e aceita a dor que a ausência de 24 anos provoca numa mãe.
- E desde então…tem notícias dele?
- Vem almoçar todos os fins-de-semana.
As lágrimas de Josefa, que pareciam por momentos contidas na observação atenta da gravilha junto à roda do velho automóvel, ressurgiram. O Alfredo não pôde evitar o espanto, seguido de uma sensação de perfeita ignorância e uma inesperada desilusão. O drama que já imaginava defraudou-o e não conseguia compreender na totalidade porque aquela mulher agia daquela forma. Ainda assim consolou-a com a sua ignorância, que para o efeito, não pareceu ter qualquer importância. No abraço, Josefa desculpou-se enquanto recuperava a respiração e se recompunha da pequena catarse daquele abraço vivo à memória passada.
Despediram-se e o Alfredo seguiu para a mercearia, agora completamente acordado para o mundo mas a perceber um pouco menos do funcionamento das pessoas. Felizmente, a sua maior relação afectiva era com o Al.

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