sexta-feira, agosto 29, 2008

masculino

"o andriy não estava com vontade de ouvir nada. ficava masculino, calado de chumbo a querer empedernir para secar todos os sentimentos. se pudesse, esquecia-se de ser emotivo, gostava de acreditar que a vida podia existir apenas como para uma máquina de trabalho perfeita, incumbida de uma tarefa muito definida, com erro reduzido e já previsto, e com isso atender ao mais certeiro objectivo, enviar algum dinheiro para a família na ucrânia, e nem pensar muito nisso e nunca dramatizar a questão."
valter hugo mãe em o apocalipse dos trabalhadores

quarta-feira, agosto 27, 2008

Original

O que mais há é gente a ouvir Antony nos subterrâneos, a olhar atentamente as metáforas das pastilhas espalmadas no chão ou a jogar roleta com os subúrbios pela janela do comboio. Original é rir.

domingo, agosto 24, 2008

Há coisas que acontecem nos intervalos das coisas

E depois todos desapareceram, uns para um lado, outros para o ar, evaporaram-se, que é uma forma de se permanecer presente. E o rapaz ficou assim, como que sozinho, a guardar o acampamento dos ataques imaginários de piratas improváveis. Quanto muito, um rato atrevido do campo a assaltar a cozinha, mas com esse não se iria preocupar. Deitou-se na areia como calhou, e calhou de ficar paralelo ao mar, se o mar tivesse uma direcção. E lançou-se a ler, e a pensar em escrever. E nos intervalos pensou “se para pensar em escrever é necessário todo este ritual, a conjugação de tantas probabilidades baixas e certezas esparsas, então nunca escreverei um conto, muito menos um romance!”. Depois continuou a ler e no intervalo das palavras apercebeu-se do som constante que escorria da bica de água doce à sua esquerda. O som cantado, com ligeiros intervalos satisfeitos, como quem salta por um campo verdejante. E à sua direita, apercebeu-se do som profundo da água revolta que anuncia a quem queira ouvir a possibilidade da tempestade.
Mais uma vez o rapaz se apercebeu estar na terra da fronteira. O ponto da linha que divide. Uma linha que agora, ao pensar e olhar em volta, conseguia imaginar estender-se pelo horizonte fora.
Um pequeno barco de pesca deslizava pelo mar e flutuava nas águas tranquilas que agora não anunciam tempestades. O pescador atarefado lançava as suas redes e preocupava-se com o rumo que o seu barco, que ele, tomava. Nisto, reparou na linha que o barco deixava atrás de si, olhou a costa a bombordo e o mar profundo a estibordo. Era uma linha que rasga, é ele quem a faz, constrói e abandona. É uma fronteira que se define em cada momento e acção e se redefine em cada intenção.
O rapaz continuava deitado como calhou, no enfiamento da sua fronteira, triste por saber da ínfima dimensão das condicionantes que lhe proporcionaram essa visão. Não, a decisão sobre o que fazer com, e na, fronteira, não importa, para já. Ainda não é pescador.

terça-feira, agosto 19, 2008

Ele correrá

Ele corria com a energia de uma gazela. Olhava para o disco que lhe lançaram e como habitualmente, e como todos nós, tentava adivinhar os seus movimentos de presa, enquanto ele, predador, se antecipava em grande velocidade. O empenho não o alertou para a aproximação de uma protuberância rochosa, um capricho que se afirmava na areia. A canela embateu-lhe. Ele rebolou pelo chão, sentou-se e gritou desalmadamente por ajuda. Ao longe parecia grave e o medo crescia. Ao perto, era assustador. A carne é fraca e a canela dividiu-se em dois. Impotentes mãos procuram juntar de volta a carne separada e esconder o osso que se desnudava. 112. Garrote? NÃO (e observo-me imbecil a verborrar em cima das palavras simples que preciso ouvir). Estancar. Com os teus calções se for preciso. Evacuar, sinalizar a chegada dos meios, porque o fim ainda está longe (lembras-te?). Corro e recordo a Lola (que “corre, Lola, corre”, contra o tempo, contra os braços que se desarmam) e observo-me uma vez mais, agora no olhar interrogativo de quem me vê fazer jogging casual. Agora passar uma mensagem, para ser levado a sério. Como suspeitava, não basta ser, não basta dizer, é preciso fazer ver, emocionar, mesmo que para isso seja necessário parecer. Mensagem passada continuo a correr, com o mesmo fôlego que trazia e que não é meu. Subo a duna e é a tua namorada e a tua amiga. Como estás entretanto? Não. É uma ferida. Silêncio. Entendes-me? Sei que sim. Vai. Espero. Espero o tempo e espero estar onde tenho de estar, onde não posso não estar. Vinte minutos passados e como estás? Imagens cinemáticas fotografam-me a visão. Filmes de guerra e os livros do Gonçalo M. Tavares. Veias, morfina, garrotes, lama, mísseis e o silêncio surdo da ambulância que não chega. Enfim aparecem, e todo o tempo de espera não foi suficiente para preparar as indicações exactas e inequívocas até ti. Observo novamente o imbecil em mim, mas as gagas palavras foram afinal suficientes. Entro no segundo carro e corro para ti. No topo da duna percebo que as pessoas do primeiro carro já chegaram e por isso espero pelas do segundo. Chego finalmente e as imagens de guerra dissipam-se. A tua perna está magicamente unida, a dualidade reduziu-se pela arte de quem te termina a ligadura. Mas os teus olhos... Uma dúzia de pessoas procura perceber o que acontece de seguida. Há stress, há indecisão, incógnitas, falta de decisão. Tudo o que habitualmente acontece quando no dia-a-dia o sentido de emergência abranda. Há exaltação, e uma vez mais me separo e observo, vejo-me irritado, por observar e não agir. Mas ouço, reparo, entendo algumas conversas pela sua metade e tento esclarecer ânimos. Enquanto isso tu tremes, um sentido prático invade-me de novo com o teu arrepio, o que te acontece por dentro? Qual o teu sangue? Os teus documentos? A tua roupa? Estás calmo, mas preocupado e assustado. Nunca te tinha visto assustado. Ou talvez já, mas nunca vi nos teus olhos tamanha incógnita. Estamos habituados e treinados para os sustos previsíveis. Depois surgem estes e é como se tivéssemos nascido ontem. És imobilizado numa maca fria e dura. Tens dores. Dói. És levado pelos braços e botas voluntárias que te vieram socorrer. Temos de arrumar tudo. Toda a bagagem, os fragmentos do acampamento espalhados com a nossa preocupação e ansiedade. Reparo um momento. E a praia tem a mesma areia. O mar tem a mesma cor, tal como o sol desce indiferente. Imóveis ou insensíveis. Foste ainda revisto pelo INEM antes de entrar na ambulância. Tinhas um novo olhar, mais vivo e confiante. Assim me reconfortaste.
Depois da catarse procurámos a racionalidade. Atravessámos a vila antes de ir ter contigo. O olhar cruza-se com pessoas sentadas e indiferentes na sua mesa de jantar. Quem enviaram hoje esses olhos para o hospital? Para eles, indiferente sou eu no carro que passa.

quarta-feira, agosto 06, 2008

poeta obscuro

"[…] talvez devêssemos fazer grandes coisas, duas ou três coisas verdadeiramente grandes, com que recomeçar o mundo. Mas quando Deus está defronte, na parede, e nos concede a obscuridade para a utilizarmos contra a sua magnificência, como uma arma insólita e enigmática, clandestina – quem pode ainda recomeçar seja o que for? O poema que se escreve – longo texto fluindo, denso e venenoso, a imitar a substância ao mesmo tempo vivificante e corruptora do sangue – não é sequer uma oferta dirigida a Deus. É a ironia, onde desliza a arma da nossa obscuridade. Tremenda força, essa.[...]"
Heberto Helder, Os Passos em Volta