segunda-feira, outubro 27, 2008

ii

Sem dar por isso, sem memorizar o caminho que percorrera, sem saber como voltar atrás, o Alfredo chegou certa vez ao princípio de uma ideia. Ao princípio de uma ideia que não precisou de mais para logo ali o assustar, lhe cortar a respiração, baixar o olhar de receio, sentir frio de medo e calor de ansiedade. Seria ele capaz de a olhar de frente? Mergulhar e deixar-se invadir, resistir ao receio de se inundar e salvar-se de afogar?
O Alfredo imaginou duas coisas que se relacionam entre si. O Alfredo Imaginou duas palavras. Depois mais uma, e outra, e outra. Imaginou o dicionário completo. E todas as relações entre todas as palavras. Pareceu-lhe idiota que algo tão simples não estivesse já feito.
Colocou-se ao caminho, embarcou nessa viagem. Decidiu apelidar carinhosamente o seu novo programa de Al, como em Alfredo.
Por cada palavra que adicionava ao Al, o Alfredo tinha meia dúzia de visões a partir das quais suspeitava poder descobrir um pouco mais de si. Por vezes deixava-se perder pelos caminhos que iniciava nessas visões e por vezes nem sentia vontade de regressar. No ritmo ressonante das palavras certas descansava toda e qualquer fadiga. Sacudia os excessos inúteis, aliviava a carga, apercebia-se claramente da real escala de importância das coisas.
Por cada palavra, o Al tinha um milhão.

segunda-feira, outubro 20, 2008

i

Naquele tempo o Alfredo já não ousava tentar compreender o que sucedera. Em diferentes pontos do tempo teorizou tentativas de explicações, justificações, desculpabilizações mas todas caíam por terra, impotentes como o ânimo de quem as produzia.
O Alfredo era engenheiro informático. Seria fácil dizer que era apenas mais um. E assim foi durante muito tempo. O Alfredo contribuía juntamente com milhares de colegas de profissão para o desenvolvimento de milhões de programas informáticos. A automatização do raciocínio humano repetido sem erro nem exaustão sempre o fascinou e nessa beleza focava a sua própria razão.
Imaginava e desenhava relações hierárquicas complexas de classes quase abstractas mas que sempre se esforçava por fazer roçar, o mais leve que fosse, na realidade tangível. Essa sua forma de trabalhar era também a base da sua forma de conceber o mundo, as relações com os outros e consigo. Era a base porque não se limitava a isso. O Alfredo diferia de muitos colegas e de muitas pessoas por não se deixar restringir aos caminhos trilhados pelo raciocínio lógico e dedutivo. Não temia colocar o pé fora do trilho, nem temia olhar para o lado, parar ou voltar atrás em qualquer percurso que iniciasse. Essa capacidade, ou irreverência – como também podia ser percebida – valeu-lhe o binómio do respeito e da inveja.
Naquele tempo, o Alfredo já não recordava nada disso ou não lhe dava qualquer importância. O orgulho que pudesse ter sentido fora arrastado nas pedras das calçadas, entupiu as sarjetas e voou com o vento até ficar preso nos ramos de Outono como roupa velha. Sentia responsabilidade na catástrofe que se abatera e nenhuma penitência lhe parecia suficiente porque nenhuma solução era agora possível. O desânimo era total.

segunda-feira, outubro 13, 2008

Com o silêncio vestiu uma vontade na outra.