quinta-feira, abril 23, 2009

Reacção

É manhã cedo e o Alfredo decidiu ir de carro para o trabalho. Para além de o regresso a casa depois do jogo de futebol ser muito mais rápido e confortável, estimulava-o a expectativa de usar a nova objectiva fotográfica algures pelo caminho. Voltar a poder capturar os desvios de raciocínio provocados por um olhar, pensamentos absurdos, momentos hiperbólicos e, com sorte, engenho e trabalho, uma linha de tudo isso.
Por azar, nabice ou desleixo, nada de extraordinário ia acontecendo. O acesso à auto-estrada fez-se pelo mesmo caminho de sempre, tal como a fila de trânsito que estava parada no mesmo sítio de sempre e os carros preenchidos com as pessoas anónimas, como sempre. Pelas bermas cresciam ervas, como sempre. Algum lixo dançava ao vento e como sempre acenava aos carros da outra faixa.
Com o carro parado e a janela aberta o olhar deambulava até encontrar um volume no asfalto da outra faixa. Em menos de nada o volume ganhou sentido mas absurdo. Um animal, mas não está completo. O olhar ainda era curioso mas intimidou-se no momento em que distinguiu, pela cor vermelha, a carne viva do animal. Um vermelho obsceno, pujante, que queria viver mas que assim pendurado no escuro do asfalto era absurdo, surreal. Um carro passou em velocidade normal, rápido. O lixo dançava e acenava ao carro que sem vacilar sobrevoou o animal jazido. Outro carro passou e um camião, e o animal parecia na verdade estar vivo, saber o que fazia enquanto apreciava a adrenalina de fintar as rodas lançadas dos carros.
A nova objectiva permanecia sossegada no banco do lado à espera do irrepetível momento rasgado que teimava em não aparecer…
Entretanto, tanto foi o tempo que até a fila se desbloqueou e avançou mais uns passos. Assim que se sentiu na iminência de avançar o Alfredo apercebe-se que não lhe ocorreu fotografar aquele momento verdadeiramente único. Aquela derradeira afirmação da vida sobre a morte, ou aquela qualquer outra interpretação que se lhe quisesse dar. Não lhe ocorrera até aí mas ainda tinha a possibilidade. Como é hábito, a fila pasmou-se pouco mais à frente. Agora era a oportunidade.

Os carros de traz ainda não buzinavam, a distância para os da frente ainda era tolerável. Mas os olhos postos no animal e a imagem das suas entranhas irredutivelmente coloradas de vida impediam o raciocínio e a sensação de abandonar o controlo sobre o corpo. Dúvidas e receios de olhar para o resultado ou de esse resultado ser visto, dúvidas sobre a legitimidade de sequer pensar em fotografar aquela cena dramática impediam o Alfredo de sequer começar a fazê-lo.
Nestas e outras deambulações o Alfredo gastou o tempo todo que tinha e viu-se obrigado a avançar até perder de vista e abandonar o animal.
No regresso a casa, cansado e com muito menos energia, a memória da cena matutina apareceu quando se aproximava do sítio onde deixara o animal. O que é que teria acontecido? Alguém teria parado para o recolher e fazer descansar em chão mais macio? Teria renascido? Ou estaria no mesmo sítio? O Alfredo aproximava-se do local à mesma velocidade que os outros carros enquanto percorria estas possibilidades e tentava saber o que pensava delas. A estrada estava mal iluminada e só a poucos metros reconheceu os restos do que admirara de manhã. O antigo animal estava agora totalmente oprimido no alcatrão, decalcado, cilindrado, espalmado. Estava esticado e escurecido como quem tentou num último esforço inútil contrariar uma força incomensuravelmente superior.
Nestas e outras deambulações o Alfredo gastou o tempo todo que tinha e voou por cima do animal. O farol iluminou a berma com as suas ervas e o lixo acenou.

sexta-feira, abril 17, 2009

vi

De regresso à confortável companhia do Al, o Alfredo recapitula as sensações intensas do sono recente. Por arrasto, emerge de novo a certeza imprecisa da possibilidade de libertação de uma força reveladora de intensidade inédita.
O Alfredo retoma a programação. O diagrama lógico que levou à imaginação do Al iluminava-lhe permanentemente o raciocínio mas de forma instável, como as sombras sem contornos de uma lâmpada suja. O Al produzia com facilidade mais textos literários, poéticos, raciocínios, músicas, discursos políticos, panfletos, manifestos do que o Alfredo poderia alguma vez consumir. Contudo frustrava-o saber da existência de áreas às quais o Al não iria nunca chegar e a causa era simples. A natureza dessas áreas não dependia da iniciativa do Al. Primeiro teria que entrar em contacto com elas e criar um elo, uma ponte, uma dependência, suportar-se na fragilidade da imprevisibilidade e com cada uma tricotar a rede sonhada.
Reprodução. O Alfredo encontrou assim, finalmente, a forma de expressar o sentimento impreciso que se insinuava. O toque que tudo finalizou aconteceu com a replicação do Al.
Numa reacção em cadeia o Al ganhou escala. Preencheu todos os lugares informáticos vazios e dominou todos os restantes sistemas arcaicos. Começou por dominar toda a blogosfera, a mais permeável. Leu e respondeu a todas as mensagens, refutou os erros e revelou as omissões em todos os blogs, tweets, wikis, fóruns, redes sociais e outras experiencias obscuras que existiam. Nada escapou. Continuou pela imprensa local, nacional, internacional e revelou os resultados incríveis das análises política, económica e social. Conjugou esses resultados com os conceitos flutuantes dos mercados de valores mobiliários e deduziu as fórmulas de cálculo da sua evolução. O Al impunha-se em todos os pontos com que tinha contacto, desde interceptar e intervir nas conversas telefónicas para corrigir o que estivesse errado até alterar subversivamente as decisões políticas com que discordava por obviamente estarem erradas. Em poucas horas, qualquer esforço para produzir material intelectual original era inútil. Já tudo estava escrito, disponível e ultrapassado.
Pasmado, o Alfredo observou esta avalanche. Torrente esquisita de clarividência misturada com o desespero da impotência e mediocridade que afogou por completo a iniciativa humana. Nada mais podia fazer agora. A alegria e a euforia inicial davam lugar a um pânico desesperado. O sonho da modelação saíra fora de controlo, ou melhor, do seu controlo. O controlo absoluto pertencia ao Al. O desânimo era total.