segunda-feira, dezembro 01, 2008

iii

O Alfredo fazia por se omitir da evidência de que o Al ganhava forma. E fazia por se abstrair da real forma que ele tomava. O Alfredo foi sempre boa pessoa. Não teve a infância facilitada com a ausência dos pais e a carência de afecto a que o colégio interno forçou. Só a contínua Josefa o observava de forma “esquisita”, como ele achava, mas os olhos dela nada mais viam que a lembrança do seu ido pequeno Daniel. A casual semelhança nos remoinhos do cabelo trazia à Josefa uma torrente de memórias inéditas. O calor da ternura contida, para não se esmagar no frio inerte, saltava os muros interiores e inundava a pele num rompante. O pequeno Alfredo recebia ali sem saber um pequeno sopro de atiçar a sua chama.
Nada nem ninguém, nem ele próprio poderiam antecipar, prever ou imaginar o que se estava a desenrolar. Da distante Josefa, que ainda hoje sonha com o pequeno Daniel no corpo do Alfredo, aos professores, alunos e colegas que tantos anos conviveram com ele. Nem uma gota de malícia se antecipava. O Alfredo é inocente. Será mesmo assim?
O Al continuava o seu crescimento. Agora já numa adolescência avançada começava pela primeira vez a desafiar o controlo do Alfredo. Vários comportamentos inesperados que permaneciam demoradamente inexplicados. Como as vezes em que por erro de análise o Alfredo não observava todos os milhões de passos intermédios que o Al meticulosamente dava e ali ficava, relutante, a observar o resultado que só muito depois começava a compreender.
O Al produzia longas listas de ideias encadeadas, autênticos raciocínios. Pedindo-lhe paciência para com a nossa lenta velocidade, era possível comunicar com ele e através de uma janela do computador ter uma conversa, um diálogo sobre tudo ou sobre nada. O Alfredo já não comunicava com mais ninguém. Fechado no seu apartamento apenas se desligava do Al para comer um pouco e dormir um pouco. Mesmo no sonho o Al era personagem principal. Já era hábito que os sonhos revelassem ao Alfredo perspectivas que acordado não conseguia focar. O sonho concedia-lhe sempre a liberdade que por muito que quisesse não conseguia conquistar quando acordado em frente ao computador. E foi num sonho que o Alfredo anteviu uma possibilidade. Algo semelhante a uma porta, ou a qualquer coisa de maior como uma barragem ou algo maior ainda mas que não conseguia nomear. Algo que finalmente libertasse todo o potencial que jazia armazenado, lhe pegasse na forma e no conteúdo, o explanasse pelos horizontes, pelos verticais, pelo tempo e pelo espaço e tudo ocupasse em... E o Alfredo acordou. Transpirado, ofegante, assustado.

3 comentários:

Unknown disse...

Cá fico à espera ansiosamente do próximo capítulo :D

serFamilia disse...

E nós a pensar que Al era de Alberto ;)

Carlos Ferreira da Silva disse...

Podia ser por aí...mas é mais Al de Alfredo ou de HAL:
http://en.wikipedia.org/wiki/HAL_9000