terça-feira, abril 17, 2012

o silencio é uma capa leve de algodão que não chega a aquecer o ar que não chega a parar
é metal que rasga lixa erode dispara à queima roupa dispara à distância
é frio que se gera que se cria
é criação fria
criação fria
a criação não deveria ser fria
que esperança pode haver se a criação for fria?
Please don't advertise any more. Just tell me.

quinta-feira, fevereiro 02, 2012

Encosto

Encontra-me no canto
ou acocorado na parede
É igual, mesmo
Que me vejas no centro
Que me mates no centro
É no encosto do canto que morro.

quarta-feira, maio 04, 2011

Entra frio pelos olhos que seca por dentro a vista molhada

Tenho péssima memória e disso tenho pena. Tenho pena de não conseguir fixar o que por vezes vejo tão nitidamente e toca o nervo que lacrimeja o olhar. Não sei o que chega primeiro, se a lágrima anunciada ou a franqueza do olhar. Não importa. Por vezes dói, apenas olhar, dói tanto como alegra. Dói por amar. Amar dói sempre, porque nada lhe é suficiente. Quando o olhar está sintonizado para amar, tudo dá pancada. A criança no autocarro, os acidentados que conversam, a velha emigrante na janela do comboio. Tudo dói, magoa, arrepia com a força da rajada gelada na noite escura. Tudo dói quando se ama e talvez por isso seja mais fácil não amar, ignorar. Talvez por isso a memória seja má, para não lembrar. Mas há momentos sem alternativa. Como agora. Infeliz quem ama assim, condenado a encaixar a violência de quem se escapa à dor.

Hoje, por agora, estou sem poder olhar para nada nem para ninguém. Hoje é dia de vertigem para o olhar de quem passa. Não se escolhem esses dias, essas horas. Acontecem. Talvez um dia os consiga controlar. Talvez nesse dia me sinta tentado a impedi-los de me magoar e me torne mais um que aprende a fugir. De facto, assim é quase demais. Tanto que perde algum sentido, tornando tudo mais verdadeiro. Um dia aprendo a fugir e serei feliz, permanente desencontrado e esquecido.

terça-feira, maio 03, 2011

Betão

Estava eu bem no meu posto quando um leve ruído surgiu.
Eram máquinas que ao longe rasgavam o chão
e o espaço amplo que criavam forravam de betão.
Ao longe ficaram,
tempo suficiente para não lhes sentir a diferença do estar parado
do movimento. Quer dizer
que ambos aconteciam e não se anulavam. Devagarinho,
devagarinho o barulho crescia um poucochinho.
Tal que a paisagem nem nunca mudou! tal como as estações também não a mudam.
Porque as estações são um caminho com retorno. Um sair e voltar a casa
para ter vontade de sair.
Já o betão não, não tem retorno. Não tem entrada, não tem saída. É o forro da solidão.
Sem querer, sem saber, sem querer saber, encontrei-me no meu posto rodeado de máquinas que rasgam o chão e me forram de betão.

quinta-feira, março 17, 2011

Não sei o que é pior, se a pele pálida entre a meia e o cano da calça da perna cruzada, ou pessoas portuguesas referirem-se em inglês à cidade do Porto como Oporto. As duas juntas no mesmo quarto de hora arruínam o dia a qualquer um.

domingo, março 13, 2011

Semáforo

Semáforo vermelho. Trânsito parado. Trânsito parado durante um tempo ridículo. Que tempo é este que passa no olhar para um semáforo? Que tempo é este?
E até quando ficar aqui parado? Arrancar. Prosseguir. Mas quando?
Agora? Daqui a 10, 20, 50 segundos?
É assustadora a arbitrariedade da decisão de avançar sobre o vermelho que nunca cai. Porque é óbvio que tudo será diferente consoante o arranque seja agora… ou agora… ou agora…
Arranquei, passei quando não era suposto ter passado. Qualquer ordem ou lógica que pudesse estar estabelecida de acordo com as nossas regras ficou estilhaçada. Como não recear pela pessoa que se aproxima da passadeira ou do vagabundo no miradouro? Como não questionar e desconfiar da razão das coisas até soltar as amarras dos sentidos?

quinta-feira, fevereiro 24, 2011

Ir, para onde os números não existam mais, por terem sido renegados, por terem sido conscientemente decretados incompetentes no estabelecimento da ordem das coisas.

segunda-feira, janeiro 24, 2011

segunda-feira, janeiro 17, 2011

Ele coleccionava futuros!

domingo, junho 20, 2010

A minha janela

A porta foi à sua vida
e a janela está aberta
No espaço, nada se move
Nada me encontra.

Nenhuma alternativa se impõe
no entanto existe um fluxo
onde me transporto.

Comigo a janela,
sempre
oca.
E a sua paisagem
frescura
uma promessa
uma passagem

domingo, junho 13, 2010

Ela caminha por novas ruas

Ela caminha por ruas novas, mas a memória está inebriada por conhecimentos quotidianos. A forma ágil de se movimentar pretende fazer crer que na verdade não há nada de novo. Ou que a novidade não é nada com que se necessite preocupar, por ser mundana, corriqueira. Tudo em volta é novo, mas dentro dos seus olhos tudo é ainda quotidiano. O percurso é aberto, pela segunda vez, com golpes afiados de confiança e arrogância. Mais uma curva e já está. Eis a curva. Uma inclinação inusitada começa por levantar suspeitas, mas não! Não há ali enganos… Até que tudo pára. E sim. Há um engano. Ela volta-se para trás e confirma que virou no sítio errado. Na verdade está agora num sítio ainda mais novo, e inexplorado, que poderia passar assim a fazer parte do seu território. No entanto este inesperado desmorona o castelinho de segurança e revela o fundamental, o facto de ser ter enganado, de os passos determinados, dançantes, terem sido abruptamente interrompidos, como uma agulha que se arrasta no disco que gira. Há uma fragilidade que se expõe.
Ela sabe que o novo caminho não é quotidiano. Sabe que há escadas por onde não subiu e ruas que não desceu. Faz parte da sua estratégia ter esses becos, ruelas, travessas e avenidas por perto, em linha de vista do emaranhado dos percursos quotidianos. Bem como cidades inteiras, pessoas inteiras, profissões inteiras que cabem nessa folga que ela reserva quotidianamente. Uma reserva de segurança, uma reserva de esperança. A sua sobrevivência quotidiana alimenta-se dessa reserva secreta de esperança. Mas infelizmente, a verdade é secreta apenas antes de ser falsa.

quinta-feira, abril 22, 2010

Rufus

A mesa longa cimentava o ambiente morno de respeitinho contente. Lá fora o jardim ilumina-se frugalmente e projectava pequenos pontos de luz e manchas de reflexos complexos na larga janela de correr. Um olhar complicado podia demorar-se ali. Havia uma fresta para que nada fosse definitivo. No entanto o ar fresco e talvez perfumado que por ali entrava não tinha hipótese face à soma das fragrâncias que as individualidades exalavam.
A soma de todos os sons, se interpretado como uma linguagem desconhecida, era igual a zero. No entanto a organização reservara uma surpresa. A janela abriu-se mais um pouco, sem pressas, e um vulto mais a sua guitarra entraram. Reconheci-o logo, era o Rufus Wainwright que logo ali começou a cantar e a expor-se, frágil a olhar aquela mesa compacta, fechada em círculo. Não resisti e aplaudi-o com entusiasmo. Aplaudi e sorri aquele sorriso sem pressa, o melhor de todos. Não sei quanto tempo depois apercebi-me ser o único a aplaudir, mas para além de ser o único a aplaudir, ninguém olhava escandalizado, incrédulo ou interrogativo, nem para mim, nem para o Rufus. A soma dos sons provenientes da mesa continuava a dar zero.

sábado, março 06, 2010

Estranha distância

Dois estranhos estão lado a lado, encostados numa das paredes da sala de concerto. Dois estranhos encontram-se todos os dias no comboio das 8:13. Outros dois estranhos almoçam quase sempre no mesmo café. Com as pessoas estranhas tem-se pouca conversa.
Dois estranhos encontram-se no estrangeiro. Dois estranhos encontram-se no supermercado junto à casa dos primos. Dois estranhos encontram-se casualmente longe do sítio onde a sua estranheza é habitual. Dois estranhos ficam espantados e a estranha distancia de dois estranhos transforma-se em proximidade. De súbito são os dois melhores amigos em quilómetros e quilómetros. Os dois melhores amigos à face da terra, para não ser menos exagerado do que o exagero de dois estranhos que se conhecem agirem como dois estranhos.

Do you realize what you lose?

Não tenho dúvida de que é fundamental existir e saber abraçar o "new thinking". Mas também tenho a certeza de que é fundamental saber o que se perde, principalmente quem nunca teve o que perdeu.

"- The other day I was in my doctor’s office, and what do you do in your doctor’s office? Wait. In the past I would be sitting and reading the magazines, I would be looking around the office looking for funny weird stuff and maybe something would strike me as a good story idea. Maybe I would just be looking at other people waiting. Who knows? Instead, I pull up my phone. Suddenly, I’m not looking around me anymore, I’m looking at the screen of my iPhone, and…
- You’re an ambivalent tweeter there Susan. I mean, you’re a star tweeter but you’re an ambivalent tweeter, I can hear it. I mean, David described that exact same thing except standing in line at Starbucks was his example. To him it was nothing but a good thing that he didn’t just have to stand in line in Starbucks, he could be tweeting while standing in line. He had saved that time, he had made productive use of that time. You are enough of an old thinker to realize you lose something when you’re not looking around at the Starbucks that you’re in."
http://www.newyorker.com/online/2010/02/22/100222on_audio_packer

domingo, fevereiro 28, 2010

A soma

A mesa longa cimentava o ambiente morno de respeitinho contente. Lá fora o jardim ilumina-se frugalmente e projectava pequenos pontos de luz e manchas de reflexos complexos na larga janela de correr. Um olhar complicado podia demorar-se ali. Havia uma fresta para que nada fosse definitivo. No entanto o ar fresco e talvez perfumado que por ali entrava não tinha hipótese face à soma das fragrâncias que as individualidades exalavam.
A soma de todos os sons, se interpretado como uma linguagem desconhecida, era igual a zero. No entanto a organização reservara uma surpresa. A janela abriu-se mais um pouco, sem pressas, e um vulto mais a sua guitarra entraram. Reconheci-o logo, era o Rufus Wainwright que logo ali começou a cantar e a expor-se, frágil a olhar aquela mesa compacta, fechada em círculo. Não resisti e aplaudi-o com entusiasmo. Aplaudi e sorri aquele sorriso sem pressa, o melhor de todos. Não sei quanto tempo depois apercebi-me ser o único a aplaudir, mas para além de ser o único a aplaudir, ninguém olhava escandalizado, incrédulo ou interrogativo, nem para mim, nem para o Rufus. A soma dos sons provenientes da mesa continuava a dar zero.

sexta-feira, janeiro 08, 2010

Gosto, quando as palavras encaixam perfeitamente, quando nenhuma outra poderia continuar a anterior, quando produzem o ritmo perfeito e fazem perceber que o mesmo não poderia nunca ser dito de outra forma.

sábado, novembro 28, 2009

No meio das vírgulas

Tudo

É agora

Novo

sexta-feira, novembro 13, 2009

Tudo é novo

Para onde vão as escadas rolantes que se encolhem no chão?!

No entanto uma fórmula cronometra-me o sono.

terça-feira, julho 07, 2009

"Por vezes, quando um cineasta faz planos que excedam a "velocidade" vazia da televisão, imediatamente o classificam de "monótono" ou "repetitivo". Quando a televisão prolonga as suas próprias imagens, sem que isso nem sequer traduza, ao menos, algum ganho informativo, ninguém diz nada..."
João Lopes, aqui http://sound--vision.blogspot.com/

sábado, julho 04, 2009

segunda-feira, junho 01, 2009

O comboio pára na estação que se segue. Dois brasileiros desconhecidos encontram-se e cumprimentam-se familiarmente. Conhecem-se. Na rua que desço para regressar a casa passo quase à porta de uma porta amiga. Recordo em acto reflexo, como se recordar fosse agir. O comboio pára na estação seguinte. Dois brasileiros despedem-se. Há um que fica e há um que sai. A música continua a tocar no ouvido do que fica. O outro sai a dançar. Dança como anda. Na rua que desço passo à porta das portas desconhecidas. Encontro quem não conheço. A música que toca não me faz dançar. Faz-me marchar. O telefone toca. Tenho de parar o que estou a fazer no computador e falar coisas concretas. Como quem marcha ao som da banda e com as botas completa a música. O comboio pára na estação que se segue. Já nenhum brasileiro dança, nem nenhum brasileiro ouve a música. O olhar triste daquela pessoa que estava a ler reflecte-se na janela escura. Estive a ler e estou cansado. Por isso fico com os olhos cansados. Mas esta pessoa que se reflecte também esteve a ler? A marcha telefónica termina, sem mortos nem feridos graças à prática que assim de mostra útil. Mentiras. De regresso ao computador leio as notícias de que há feridos graves nos comboios que param nas estações. “Olhares cansados reflectidos em janelas escuras ferem três”, leio. Desejo que os comboios não se atrasem. A noite parece ter caído porque todas as janelas escureceram. Debruço-me para ver o caminho, colocar a cabeça de fora, sentir o vento secar os olhos e entrar pela camisola. Mas estas janelas não abrem e vejo o meu reflexo.

domingo, maio 17, 2009

DOM Lisboa

Rua Sousa Martins:
"Há incerteza deliciosa"












Rua Bernardo Lima:
"Sob o asfalto da razão sobrevive a lógica do sensível"

sábado, maio 16, 2009

Antony and the Johnosons no Coliseu de Lisboa...

Mais uma vez...deslumbrante.
Admirei a diferença na postura mais descontraída, menos melodramática. O conforto do caminho que se percorre.
Obrigado

terça-feira, maio 05, 2009

P.J. Harvey na Casa da Musica

Foi no dia 2 de Maio 2009.
Não resisti a filmar um pedaço deste momento alto...de um concerto já de si elevado.

Taut:

quinta-feira, abril 23, 2009

Reacção

É manhã cedo e o Alfredo decidiu ir de carro para o trabalho. Para além de o regresso a casa depois do jogo de futebol ser muito mais rápido e confortável, estimulava-o a expectativa de usar a nova objectiva fotográfica algures pelo caminho. Voltar a poder capturar os desvios de raciocínio provocados por um olhar, pensamentos absurdos, momentos hiperbólicos e, com sorte, engenho e trabalho, uma linha de tudo isso.
Por azar, nabice ou desleixo, nada de extraordinário ia acontecendo. O acesso à auto-estrada fez-se pelo mesmo caminho de sempre, tal como a fila de trânsito que estava parada no mesmo sítio de sempre e os carros preenchidos com as pessoas anónimas, como sempre. Pelas bermas cresciam ervas, como sempre. Algum lixo dançava ao vento e como sempre acenava aos carros da outra faixa.
Com o carro parado e a janela aberta o olhar deambulava até encontrar um volume no asfalto da outra faixa. Em menos de nada o volume ganhou sentido mas absurdo. Um animal, mas não está completo. O olhar ainda era curioso mas intimidou-se no momento em que distinguiu, pela cor vermelha, a carne viva do animal. Um vermelho obsceno, pujante, que queria viver mas que assim pendurado no escuro do asfalto era absurdo, surreal. Um carro passou em velocidade normal, rápido. O lixo dançava e acenava ao carro que sem vacilar sobrevoou o animal jazido. Outro carro passou e um camião, e o animal parecia na verdade estar vivo, saber o que fazia enquanto apreciava a adrenalina de fintar as rodas lançadas dos carros.
A nova objectiva permanecia sossegada no banco do lado à espera do irrepetível momento rasgado que teimava em não aparecer…
Entretanto, tanto foi o tempo que até a fila se desbloqueou e avançou mais uns passos. Assim que se sentiu na iminência de avançar o Alfredo apercebe-se que não lhe ocorreu fotografar aquele momento verdadeiramente único. Aquela derradeira afirmação da vida sobre a morte, ou aquela qualquer outra interpretação que se lhe quisesse dar. Não lhe ocorrera até aí mas ainda tinha a possibilidade. Como é hábito, a fila pasmou-se pouco mais à frente. Agora era a oportunidade.

Os carros de traz ainda não buzinavam, a distância para os da frente ainda era tolerável. Mas os olhos postos no animal e a imagem das suas entranhas irredutivelmente coloradas de vida impediam o raciocínio e a sensação de abandonar o controlo sobre o corpo. Dúvidas e receios de olhar para o resultado ou de esse resultado ser visto, dúvidas sobre a legitimidade de sequer pensar em fotografar aquela cena dramática impediam o Alfredo de sequer começar a fazê-lo.
Nestas e outras deambulações o Alfredo gastou o tempo todo que tinha e viu-se obrigado a avançar até perder de vista e abandonar o animal.
No regresso a casa, cansado e com muito menos energia, a memória da cena matutina apareceu quando se aproximava do sítio onde deixara o animal. O que é que teria acontecido? Alguém teria parado para o recolher e fazer descansar em chão mais macio? Teria renascido? Ou estaria no mesmo sítio? O Alfredo aproximava-se do local à mesma velocidade que os outros carros enquanto percorria estas possibilidades e tentava saber o que pensava delas. A estrada estava mal iluminada e só a poucos metros reconheceu os restos do que admirara de manhã. O antigo animal estava agora totalmente oprimido no alcatrão, decalcado, cilindrado, espalmado. Estava esticado e escurecido como quem tentou num último esforço inútil contrariar uma força incomensuravelmente superior.
Nestas e outras deambulações o Alfredo gastou o tempo todo que tinha e voou por cima do animal. O farol iluminou a berma com as suas ervas e o lixo acenou.

sexta-feira, abril 17, 2009

vi

De regresso à confortável companhia do Al, o Alfredo recapitula as sensações intensas do sono recente. Por arrasto, emerge de novo a certeza imprecisa da possibilidade de libertação de uma força reveladora de intensidade inédita.
O Alfredo retoma a programação. O diagrama lógico que levou à imaginação do Al iluminava-lhe permanentemente o raciocínio mas de forma instável, como as sombras sem contornos de uma lâmpada suja. O Al produzia com facilidade mais textos literários, poéticos, raciocínios, músicas, discursos políticos, panfletos, manifestos do que o Alfredo poderia alguma vez consumir. Contudo frustrava-o saber da existência de áreas às quais o Al não iria nunca chegar e a causa era simples. A natureza dessas áreas não dependia da iniciativa do Al. Primeiro teria que entrar em contacto com elas e criar um elo, uma ponte, uma dependência, suportar-se na fragilidade da imprevisibilidade e com cada uma tricotar a rede sonhada.
Reprodução. O Alfredo encontrou assim, finalmente, a forma de expressar o sentimento impreciso que se insinuava. O toque que tudo finalizou aconteceu com a replicação do Al.
Numa reacção em cadeia o Al ganhou escala. Preencheu todos os lugares informáticos vazios e dominou todos os restantes sistemas arcaicos. Começou por dominar toda a blogosfera, a mais permeável. Leu e respondeu a todas as mensagens, refutou os erros e revelou as omissões em todos os blogs, tweets, wikis, fóruns, redes sociais e outras experiencias obscuras que existiam. Nada escapou. Continuou pela imprensa local, nacional, internacional e revelou os resultados incríveis das análises política, económica e social. Conjugou esses resultados com os conceitos flutuantes dos mercados de valores mobiliários e deduziu as fórmulas de cálculo da sua evolução. O Al impunha-se em todos os pontos com que tinha contacto, desde interceptar e intervir nas conversas telefónicas para corrigir o que estivesse errado até alterar subversivamente as decisões políticas com que discordava por obviamente estarem erradas. Em poucas horas, qualquer esforço para produzir material intelectual original era inútil. Já tudo estava escrito, disponível e ultrapassado.
Pasmado, o Alfredo observou esta avalanche. Torrente esquisita de clarividência misturada com o desespero da impotência e mediocridade que afogou por completo a iniciativa humana. Nada mais podia fazer agora. A alegria e a euforia inicial davam lugar a um pânico desesperado. O sonho da modelação saíra fora de controlo, ou melhor, do seu controlo. O controlo absoluto pertencia ao Al. O desânimo era total.

sexta-feira, fevereiro 27, 2009

Quando a sapiência corporativa desvenda um pouco da sua graça não há como não sentir a luz.
Eis uma pérola recentemente revelada:

"a inteligência já não esta nos terminais, esta na web"
.

terça-feira, janeiro 27, 2009

v

Fraco, com fome e sem nada para além de caixas de comida vazias, o Alfredo procurou dinheiro trocado e desceu à mercearia. Após dois lanços apercebe-se que continuava de pijama. Amaldiçoou a sorte e voltou a traz. Agora, apesar vestido, não esconde o sono e qualquer pessoa deduziria que aquela personagem não está ainda integrada neste mundo por ainda não ter abandonado o do sonho. Começa a atravessar a rua e os poucos passos necessários parecem demorar-se mais que o habitual. No canto do olho talvez um vulto se aproxime, talvez rapidamente, talvez um carro. Os passos deslizavam-se mas são bruscamente estancados pela travagem agressiva de um carro azul desbotado.
Sem pânico, apenas espanto, o Alfredo procura o condutor e reconhece no olhar esbugalhado de susto o olhar outrora atento da protectora Josefa. Ela sai do carro a tremer.
- O menino está bem?
- Sim, não se preocupe.
- Como não me preocupo! Por pouco atropelava-te!
- Sim, tem razão, mas…
- Não tens nenhuma nódoa negra? Vamos ao hospital. Eles fazem um raio-x!
- Não é preciso! O carro nem me tocou. Foi só o susto. E olhe, eu vinha tão distraído que nem me assustei.
- Ai, meu Deus…o que eu ia fazendo?! Meu Deus!
Para espanto do Alfredo, os olhos de Josefa humedecem-se e brilham no resultado de uma dolorosa mágoa que a consome por dentro.
- És o Alfredo. Eu lembro-me de ti. Talvez não te lembres de mim…
- …sim lembro…
-…eu era contínua na escola e tu eras um miudinho. Ah, lembras – um suspiro denuncia um certo embaraço – e do que te lembras?
- Ora, lembro-me que você me estava sempre a controlar! Quero dizer, tinha sempre para mim um olhar e um gesto protector. Nunca entendi porquê, mas confesso que até agora não me tinha voltado a colocar essa questão.
- Sim, talvez tenhas razão. Eu era controladora. Não sabia que te apercebias disso e espero que não me tenhas levado a mal. Tu tens muitas parecenças com o meu filho Daniel. Nunca o conheceste, ele é mais velho que tu. Naquela altura ele tinha 34 anos. Mas tu eras igual a ele na tua idade – a humidade nos olhos de Josefa aumenta e em cada pausa há um silêncio maior que luta por se soltar.
- Ah… Sinto muito…não lhe levo nada a mal. Como lhe disse, até este momento não me recordava desses acontecimentos e aparentemente não posso dizer que me tenham marcado.
- Desculpa, não era de todo a minha intenção perturbar-te.
- Mas não perturbou, não se preocupe.
Há mais uma pausa mínima e o rebentamento finalmente ocorre, as lágrimas começam a nascer em catadupa. A Josefa permanecia imóvel, num silêncio entrecortado pela respiração ligeiramente descontrolada. Notava-se que tinha prática neste exercício. E isso apenas aumentava a tensão da postura dorida.
- Eras tão parecido com ele… - continua com o olhar vago e desfocado deste mundo.
- O que lhe aconteceu?
- Saiu de casa – e o olhar recola-se ao pavimento.
- Compreendo – disse a medo – e depois?
- Nada, apenas isso.
- Há muito tempo?
- Há 24 anos.
O Alfredo ouviu e aceita a dor que a ausência de 24 anos provoca numa mãe.
- E desde então…tem notícias dele?
- Vem almoçar todos os fins-de-semana.
As lágrimas de Josefa, que pareciam por momentos contidas na observação atenta da gravilha junto à roda do velho automóvel, ressurgiram. O Alfredo não pôde evitar o espanto, seguido de uma sensação de perfeita ignorância e uma inesperada desilusão. O drama que já imaginava defraudou-o e não conseguia compreender na totalidade porque aquela mulher agia daquela forma. Ainda assim consolou-a com a sua ignorância, que para o efeito, não pareceu ter qualquer importância. No abraço, Josefa desculpou-se enquanto recuperava a respiração e se recompunha da pequena catarse daquele abraço vivo à memória passada.
Despediram-se e o Alfredo seguiu para a mercearia, agora completamente acordado para o mundo mas a perceber um pouco menos do funcionamento das pessoas. Felizmente, a sua maior relação afectiva era com o Al.

sexta-feira, dezembro 12, 2008

iv

O susto durou pouco tempo e transformou-se em ansiedade. Aquela conhecida e amada tensão de deduzir para o raciocínio lógico uma solução pressentida. Mas desta vez, a sugestão fora levantada num sonho e como toda a gente parece saber, os sonhos não obedecem a regras lógicas. Na verdade até pode não ser assim e obedecerem realmente à mais estrita e exigente lógica. Na verdade, nós é que pecamos em poder de alcance para seguir as pistas e interpretar as premissas desses raciocínios. Somos nós quem receia certas destravagens. Mesmo o excêntrico mais aleatório tem uma base finita de estímulos, reacções e acções previsíveis. Nada é imprevisível, como um jogo de xadrez em que a regra do movimento das peças não estivesse estabelecida mas continuasse a ser certo que apenas uma cabe em cada quadrícula. Ou como um jogo de xadrez em que a regra do movimento das peças não estivesse estabelecida nem fosse certo que apenas uma caiba em cada quadrícula, mas fosse certo que o jogo apenas decorre dentro do tabuleiro. E por aí diante, aleatoriamente previsível e possível. Até ao indizível, inominável, indeterminável, apenas imaginável, endeusável. Até aos frutos, o elemento improvável se colocarmos um olhar novo num tronco e numas folhas, nos elementos que o fizeram nascer.
O Alfredo acalmou-se. Ainda deitado, concentrou-se em absorver os restos dos tremores que o invadiram e em alimentar-se deles. Retomou lentamente consciência. Lentamente. Controladamente. Recomeçou a identificar as formas que delimitavam o espaço do quarto, a luz que trespassa o estore e se projecta na parede lateral do quarto, as molas desalinhadas do colchão, o pêlo tosco e morno do cobertor.
Lentamente, em hipnose, no limbo, o Alfredo dirige-se à que sabe ser a última actualização do Al.

o Antony responde

Desafiado pela Pimpinela, que foi desafiada pelo Cálssio, que foi desafiado pelo Fruta e Verdura, que foi desafiado pela Manana, e por aí em diante até ao principio do mundo que coincidiu com o principio das acções em cadeia (as chain letters, o spam e o fogo foram inventados na mesma altura), utilizo nomes de canções do Antony para dar resposta às questões que toda a gente se coloca:

És homem ou mulher?
I Hope There's Someone

Descreve-te.

For Today I Am A Boy

O que pensam as pessoas de ti?
Blind (participação com os Hercules and Love Affair)

Como descreves o teu último relacionamento?
Mysteries of Love

Descreve o estado actual da tua relação.
Spiralling

Onde querias estar agora?
Free At Last

O que pensas a respeito do amor?
Deeper Than Love

Como é a tua vida?
I Fell in Love With a Dead Boy

O que pedirias se só pudesses ter um desejo?
The Horror Has Gone

Escreve uma frase sábia.
What Can I Do?

Vou experimentar não passar a bola a ninguém e ver se ela surge por geração espontânea nalgum sítio!

segunda-feira, dezembro 01, 2008

iii

O Alfredo fazia por se omitir da evidência de que o Al ganhava forma. E fazia por se abstrair da real forma que ele tomava. O Alfredo foi sempre boa pessoa. Não teve a infância facilitada com a ausência dos pais e a carência de afecto a que o colégio interno forçou. Só a contínua Josefa o observava de forma “esquisita”, como ele achava, mas os olhos dela nada mais viam que a lembrança do seu ido pequeno Daniel. A casual semelhança nos remoinhos do cabelo trazia à Josefa uma torrente de memórias inéditas. O calor da ternura contida, para não se esmagar no frio inerte, saltava os muros interiores e inundava a pele num rompante. O pequeno Alfredo recebia ali sem saber um pequeno sopro de atiçar a sua chama.
Nada nem ninguém, nem ele próprio poderiam antecipar, prever ou imaginar o que se estava a desenrolar. Da distante Josefa, que ainda hoje sonha com o pequeno Daniel no corpo do Alfredo, aos professores, alunos e colegas que tantos anos conviveram com ele. Nem uma gota de malícia se antecipava. O Alfredo é inocente. Será mesmo assim?
O Al continuava o seu crescimento. Agora já numa adolescência avançada começava pela primeira vez a desafiar o controlo do Alfredo. Vários comportamentos inesperados que permaneciam demoradamente inexplicados. Como as vezes em que por erro de análise o Alfredo não observava todos os milhões de passos intermédios que o Al meticulosamente dava e ali ficava, relutante, a observar o resultado que só muito depois começava a compreender.
O Al produzia longas listas de ideias encadeadas, autênticos raciocínios. Pedindo-lhe paciência para com a nossa lenta velocidade, era possível comunicar com ele e através de uma janela do computador ter uma conversa, um diálogo sobre tudo ou sobre nada. O Alfredo já não comunicava com mais ninguém. Fechado no seu apartamento apenas se desligava do Al para comer um pouco e dormir um pouco. Mesmo no sonho o Al era personagem principal. Já era hábito que os sonhos revelassem ao Alfredo perspectivas que acordado não conseguia focar. O sonho concedia-lhe sempre a liberdade que por muito que quisesse não conseguia conquistar quando acordado em frente ao computador. E foi num sonho que o Alfredo anteviu uma possibilidade. Algo semelhante a uma porta, ou a qualquer coisa de maior como uma barragem ou algo maior ainda mas que não conseguia nomear. Algo que finalmente libertasse todo o potencial que jazia armazenado, lhe pegasse na forma e no conteúdo, o explanasse pelos horizontes, pelos verticais, pelo tempo e pelo espaço e tudo ocupasse em... E o Alfredo acordou. Transpirado, ofegante, assustado.

segunda-feira, novembro 24, 2008

Pressentimento

É em momentos cinemáticos como este que desfruto do prazer total de semicerrar os olhos, mascar uma pastilha ao som do Block Rockin' Beats dos Chemical Brothers e caminhar como quem transporta 4 pistolas semiautomáticas, dirigir-me à casa de banho encarnando numa personagem do Matrix pronto a estourar os ladrilhos com o impacto do primeiro rotativo que aplico no mauzão que tenta opor-se-me.
É em momentos indistintos como este que pressinto a gripe que me vai salvar de afogamento na realidade.

terça-feira, novembro 04, 2008

Antony and the Johnsons - Another World


"Another World directed by Colin Whitaker taken from Antony and the Johnsons upcoming 'Another World' EP out on October 7th"
click here

segunda-feira, outubro 27, 2008

ii

Sem dar por isso, sem memorizar o caminho que percorrera, sem saber como voltar atrás, o Alfredo chegou certa vez ao princípio de uma ideia. Ao princípio de uma ideia que não precisou de mais para logo ali o assustar, lhe cortar a respiração, baixar o olhar de receio, sentir frio de medo e calor de ansiedade. Seria ele capaz de a olhar de frente? Mergulhar e deixar-se invadir, resistir ao receio de se inundar e salvar-se de afogar?
O Alfredo imaginou duas coisas que se relacionam entre si. O Alfredo Imaginou duas palavras. Depois mais uma, e outra, e outra. Imaginou o dicionário completo. E todas as relações entre todas as palavras. Pareceu-lhe idiota que algo tão simples não estivesse já feito.
Colocou-se ao caminho, embarcou nessa viagem. Decidiu apelidar carinhosamente o seu novo programa de Al, como em Alfredo.
Por cada palavra que adicionava ao Al, o Alfredo tinha meia dúzia de visões a partir das quais suspeitava poder descobrir um pouco mais de si. Por vezes deixava-se perder pelos caminhos que iniciava nessas visões e por vezes nem sentia vontade de regressar. No ritmo ressonante das palavras certas descansava toda e qualquer fadiga. Sacudia os excessos inúteis, aliviava a carga, apercebia-se claramente da real escala de importância das coisas.
Por cada palavra, o Al tinha um milhão.

segunda-feira, outubro 20, 2008

i

Naquele tempo o Alfredo já não ousava tentar compreender o que sucedera. Em diferentes pontos do tempo teorizou tentativas de explicações, justificações, desculpabilizações mas todas caíam por terra, impotentes como o ânimo de quem as produzia.
O Alfredo era engenheiro informático. Seria fácil dizer que era apenas mais um. E assim foi durante muito tempo. O Alfredo contribuía juntamente com milhares de colegas de profissão para o desenvolvimento de milhões de programas informáticos. A automatização do raciocínio humano repetido sem erro nem exaustão sempre o fascinou e nessa beleza focava a sua própria razão.
Imaginava e desenhava relações hierárquicas complexas de classes quase abstractas mas que sempre se esforçava por fazer roçar, o mais leve que fosse, na realidade tangível. Essa sua forma de trabalhar era também a base da sua forma de conceber o mundo, as relações com os outros e consigo. Era a base porque não se limitava a isso. O Alfredo diferia de muitos colegas e de muitas pessoas por não se deixar restringir aos caminhos trilhados pelo raciocínio lógico e dedutivo. Não temia colocar o pé fora do trilho, nem temia olhar para o lado, parar ou voltar atrás em qualquer percurso que iniciasse. Essa capacidade, ou irreverência – como também podia ser percebida – valeu-lhe o binómio do respeito e da inveja.
Naquele tempo, o Alfredo já não recordava nada disso ou não lhe dava qualquer importância. O orgulho que pudesse ter sentido fora arrastado nas pedras das calçadas, entupiu as sarjetas e voou com o vento até ficar preso nos ramos de Outono como roupa velha. Sentia responsabilidade na catástrofe que se abatera e nenhuma penitência lhe parecia suficiente porque nenhuma solução era agora possível. O desânimo era total.

segunda-feira, outubro 13, 2008

Com o silêncio vestiu uma vontade na outra.

terça-feira, setembro 23, 2008

"se por dentro o coração se pudesse soltar, haveria de se ter soltado o meu para se diluir nas lágrimas que chorei."
valter hugo mãe em o remorso de baltazar serapião
pior
é ser resultado de uma equação

quinta-feira, setembro 11, 2008

Tudo em que acreditamos é falso

Um fosso separa dois sentimentos, iguais, profundos, dois fossos.
Dois ímanes mantêm afastados.
Dois cubos de gelo não se unem.
um sentimento forma-se
(são símbolos professora?)
eu parece-me que não
são vapores de alma
marinada
aquecida
a embaciar a percepção
a condensar ausência de palavras
que O são

sexta-feira, agosto 29, 2008

masculino

"o andriy não estava com vontade de ouvir nada. ficava masculino, calado de chumbo a querer empedernir para secar todos os sentimentos. se pudesse, esquecia-se de ser emotivo, gostava de acreditar que a vida podia existir apenas como para uma máquina de trabalho perfeita, incumbida de uma tarefa muito definida, com erro reduzido e já previsto, e com isso atender ao mais certeiro objectivo, enviar algum dinheiro para a família na ucrânia, e nem pensar muito nisso e nunca dramatizar a questão."
valter hugo mãe em o apocalipse dos trabalhadores

quarta-feira, agosto 27, 2008

Original

O que mais há é gente a ouvir Antony nos subterrâneos, a olhar atentamente as metáforas das pastilhas espalmadas no chão ou a jogar roleta com os subúrbios pela janela do comboio. Original é rir.

domingo, agosto 24, 2008

Há coisas que acontecem nos intervalos das coisas

E depois todos desapareceram, uns para um lado, outros para o ar, evaporaram-se, que é uma forma de se permanecer presente. E o rapaz ficou assim, como que sozinho, a guardar o acampamento dos ataques imaginários de piratas improváveis. Quanto muito, um rato atrevido do campo a assaltar a cozinha, mas com esse não se iria preocupar. Deitou-se na areia como calhou, e calhou de ficar paralelo ao mar, se o mar tivesse uma direcção. E lançou-se a ler, e a pensar em escrever. E nos intervalos pensou “se para pensar em escrever é necessário todo este ritual, a conjugação de tantas probabilidades baixas e certezas esparsas, então nunca escreverei um conto, muito menos um romance!”. Depois continuou a ler e no intervalo das palavras apercebeu-se do som constante que escorria da bica de água doce à sua esquerda. O som cantado, com ligeiros intervalos satisfeitos, como quem salta por um campo verdejante. E à sua direita, apercebeu-se do som profundo da água revolta que anuncia a quem queira ouvir a possibilidade da tempestade.
Mais uma vez o rapaz se apercebeu estar na terra da fronteira. O ponto da linha que divide. Uma linha que agora, ao pensar e olhar em volta, conseguia imaginar estender-se pelo horizonte fora.
Um pequeno barco de pesca deslizava pelo mar e flutuava nas águas tranquilas que agora não anunciam tempestades. O pescador atarefado lançava as suas redes e preocupava-se com o rumo que o seu barco, que ele, tomava. Nisto, reparou na linha que o barco deixava atrás de si, olhou a costa a bombordo e o mar profundo a estibordo. Era uma linha que rasga, é ele quem a faz, constrói e abandona. É uma fronteira que se define em cada momento e acção e se redefine em cada intenção.
O rapaz continuava deitado como calhou, no enfiamento da sua fronteira, triste por saber da ínfima dimensão das condicionantes que lhe proporcionaram essa visão. Não, a decisão sobre o que fazer com, e na, fronteira, não importa, para já. Ainda não é pescador.

terça-feira, agosto 19, 2008

Ele correrá

Ele corria com a energia de uma gazela. Olhava para o disco que lhe lançaram e como habitualmente, e como todos nós, tentava adivinhar os seus movimentos de presa, enquanto ele, predador, se antecipava em grande velocidade. O empenho não o alertou para a aproximação de uma protuberância rochosa, um capricho que se afirmava na areia. A canela embateu-lhe. Ele rebolou pelo chão, sentou-se e gritou desalmadamente por ajuda. Ao longe parecia grave e o medo crescia. Ao perto, era assustador. A carne é fraca e a canela dividiu-se em dois. Impotentes mãos procuram juntar de volta a carne separada e esconder o osso que se desnudava. 112. Garrote? NÃO (e observo-me imbecil a verborrar em cima das palavras simples que preciso ouvir). Estancar. Com os teus calções se for preciso. Evacuar, sinalizar a chegada dos meios, porque o fim ainda está longe (lembras-te?). Corro e recordo a Lola (que “corre, Lola, corre”, contra o tempo, contra os braços que se desarmam) e observo-me uma vez mais, agora no olhar interrogativo de quem me vê fazer jogging casual. Agora passar uma mensagem, para ser levado a sério. Como suspeitava, não basta ser, não basta dizer, é preciso fazer ver, emocionar, mesmo que para isso seja necessário parecer. Mensagem passada continuo a correr, com o mesmo fôlego que trazia e que não é meu. Subo a duna e é a tua namorada e a tua amiga. Como estás entretanto? Não. É uma ferida. Silêncio. Entendes-me? Sei que sim. Vai. Espero. Espero o tempo e espero estar onde tenho de estar, onde não posso não estar. Vinte minutos passados e como estás? Imagens cinemáticas fotografam-me a visão. Filmes de guerra e os livros do Gonçalo M. Tavares. Veias, morfina, garrotes, lama, mísseis e o silêncio surdo da ambulância que não chega. Enfim aparecem, e todo o tempo de espera não foi suficiente para preparar as indicações exactas e inequívocas até ti. Observo novamente o imbecil em mim, mas as gagas palavras foram afinal suficientes. Entro no segundo carro e corro para ti. No topo da duna percebo que as pessoas do primeiro carro já chegaram e por isso espero pelas do segundo. Chego finalmente e as imagens de guerra dissipam-se. A tua perna está magicamente unida, a dualidade reduziu-se pela arte de quem te termina a ligadura. Mas os teus olhos... Uma dúzia de pessoas procura perceber o que acontece de seguida. Há stress, há indecisão, incógnitas, falta de decisão. Tudo o que habitualmente acontece quando no dia-a-dia o sentido de emergência abranda. Há exaltação, e uma vez mais me separo e observo, vejo-me irritado, por observar e não agir. Mas ouço, reparo, entendo algumas conversas pela sua metade e tento esclarecer ânimos. Enquanto isso tu tremes, um sentido prático invade-me de novo com o teu arrepio, o que te acontece por dentro? Qual o teu sangue? Os teus documentos? A tua roupa? Estás calmo, mas preocupado e assustado. Nunca te tinha visto assustado. Ou talvez já, mas nunca vi nos teus olhos tamanha incógnita. Estamos habituados e treinados para os sustos previsíveis. Depois surgem estes e é como se tivéssemos nascido ontem. És imobilizado numa maca fria e dura. Tens dores. Dói. És levado pelos braços e botas voluntárias que te vieram socorrer. Temos de arrumar tudo. Toda a bagagem, os fragmentos do acampamento espalhados com a nossa preocupação e ansiedade. Reparo um momento. E a praia tem a mesma areia. O mar tem a mesma cor, tal como o sol desce indiferente. Imóveis ou insensíveis. Foste ainda revisto pelo INEM antes de entrar na ambulância. Tinhas um novo olhar, mais vivo e confiante. Assim me reconfortaste.
Depois da catarse procurámos a racionalidade. Atravessámos a vila antes de ir ter contigo. O olhar cruza-se com pessoas sentadas e indiferentes na sua mesa de jantar. Quem enviaram hoje esses olhos para o hospital? Para eles, indiferente sou eu no carro que passa.

quarta-feira, agosto 06, 2008

poeta obscuro

"[…] talvez devêssemos fazer grandes coisas, duas ou três coisas verdadeiramente grandes, com que recomeçar o mundo. Mas quando Deus está defronte, na parede, e nos concede a obscuridade para a utilizarmos contra a sua magnificência, como uma arma insólita e enigmática, clandestina – quem pode ainda recomeçar seja o que for? O poema que se escreve – longo texto fluindo, denso e venenoso, a imitar a substância ao mesmo tempo vivificante e corruptora do sangue – não é sequer uma oferta dirigida a Deus. É a ironia, onde desliza a arma da nossa obscuridade. Tremenda força, essa.[...]"
Heberto Helder, Os Passos em Volta

quinta-feira, julho 17, 2008

remeto ao abandono
percorro a rua encantado
mato em cada passo um pouco
mais o que de mim se desprende

terça-feira, julho 15, 2008

domingo, julho 06, 2008

Radiohead @ Manchester

2+2=5 ?
You have not been paying attention


Setlist
http://www.ateaseweb.com/2008/06/29/radiohead-live-in-manchester-live-report/
01 15 Step
02 Airbag
03 There There
04 All I Need
05 Nude
06 Arpeggi
07 The Gloaming
08 The National Anthem
09 Faust Arp [People are moshing during Faust Arp! Thom: "Enough. Who'd we look like, the Arctic Monkeys?"]
10 No Surprises
11 Jigsaw Falling Into Place
12 Reckoner
13 Just
14 Bangers ‘n Mash
15 Everything In Its Right Place
16 Fake Plastic Trees
17 Bodysnatchers

Encore 1
18 Videotape
19 Paranoid Android
20 Myxomatosis
21 Optimistic [Thom: "You ever met a politician and got the feeling they’re hollow inside? I had that feeling. However, I remain optimistic".]
22 Karma Police

Encore 2
23 Pyramid Song
24 2+2=5
25 Idioteque

Encore 3
26 Lucky

quinta-feira, junho 26, 2008

terça-feira, junho 17, 2008

segunda-feira, junho 16, 2008

O sentido

Qual é a tua cena?
A tua cena é não ter cena
É não ser cena

Um reflexo vazio
de um espelho perdido
ou abandonado
num deserto vivo
apinhado
de gente voraz,
pedintes dos afectos
dos reflexos
que vagueiam vazios
pelo deserto

quinta-feira, junho 05, 2008

afastas-te
mas um sorriso permanece
e entranha-se
como a água se infiltra na areia
certa do regresso da onda

segunda-feira, junho 02, 2008

Às vezes fico assim, parado a olhar para as coisas até que percam significado. Reparo que não o perdem imediatamente. Passo demoradamente na estética e só depois se desprovêem totalmente dos juízos que pudessem ter. Curiosamente, há depois uma Nova Estética. Talvez maior.

domingo, abril 06, 2008

Corre na noite um ar frio que seca a lágrima
um ar negro sem cor que descansa o olhar

quarta-feira, março 05, 2008

















dois carris, um para ir, outro para vir. um para vir, outro para ir.
consoante o ponto, dos dois possíveis, em que se encontrava.

quarta-feira, janeiro 23, 2008














Today I went out for dinner but I didn't want to go alone. So here is a photo. I think it went pretty well. We got off really warm and comfy and you don't get that feeling all the time.

segunda-feira, janeiro 07, 2008

Ele não chora. Corre, a chuva pousa no pára-brisa e forma gotas que o vento escorre, como lágrimas. Ele não chora.